Trecho da entrevista ao IHU-Online, de dezembro de 2012.
Público em partes, pois depois de tanto tempo notei que era muito conteúdo para
uma entrevista só. O leitor contemporâneo não tem tempo para ler um imenso
texto. Então, vamos por partes. Ao final do texto manterei sempre o link da
entrevista original para quem desejar lê-la de uma só vez.
IHU On-Line – De forma geral, como o senhor define e
caracteriza a relação entre cinema e religião e entre teologia e cinema?
Luiz Vadico – Antes de responder a essas duas
questões, gostaria de estabelecer o lugar a partir do qual tecerei meus
comentários. O meu campo de pesquisa é o chamado cinema mainstrean, ou
simplesmente o “cinema comercial” como muitos o conhecem, seja ele
hollywoodiano/americano ou de outra origem, como francesa ou italiana. A
palavra “religião”, por sua vez, possui uma acepção extremamente ampla, e
tomada desta forma pulverizaria e fragmentaria qualquer conclusão a que
poderíamos chegar. Falamos, portanto, a partir do ocidente, a partir da
experiência cristã, e nossas conclusões não se aplicam necessariamente a outras
religiões e religiosidades. Então, no que tange ao vetor cinema/religião, o
interesse da indústria cinematográfica sempre foi o lucro. O cinema é uma arte
industrial. O filme é um produto desta indústria, um produto caro (mesmo quando
de baixo orçamento) que necessita ser vendido e dar retorno financeiro. Esta
indústria, desde o início da sua história, desejou elaborar um produto que
pudesse atingir o público das igrejas, pois isso lhe daria maior respaldo
social, e no início do século XX era difícil encontrar um espectador que não
estivesse ligado a uma confissão qualquer. Nesse sentido, a nascente indústria
desejou fazer um produto que pudesse agradar este público e cativá-lo,
minimizando os seus riscos. A religião, seus sentidos e significados, não fazia
parte de seu interesse propriamente dito.
“Ligas pela Moral”
Esta necessidade do cinema surgiu frente ao desenvolvimento
das chamadas “Ligas pela Moral”, um movimento social bastante significativo na
virada do século XIX para o XX, e que possuía ramificações em diversos países,
como Itália, Suíça, Grã-Bretanha, França, Estados Unidos e Brasil. As Ligas, que
inicialmente lutavam contra a pornografia (cartões postais, impressos e
literatura), posteriormente passaram também a questionar a qualidade moral dos
filmes e se empenharam em fechar as insipientes salas de cinema, em nome da
moral e dos bons costumes. É importante notar que, apesar de contar com o aval
das instituições religiosas, as ligas foram organizadas por componentes da
sociedade civil. Este processo culminaria com o estabelecimento do British
Board (órgão de censura britânico), em 1913, e do conhecido “Código Hays” de
autorregulamentação cinematográfica, nos Estados Unidos, cujos efeitos se
fariam sentir desde a sua pré-elaboração, nos anos 1920, até o seu
desaparecimento em fins dos anos 1960.
No outro vetor possível religião/cinema as relações foram
múltiplas e complexas, pois não há como se dizer que uma “religião” lidou desta
ou daquela maneira, mas o que parece ter havido foi uma multiplicidade de
reações particulares destes ou daqueles representantes de uma determinada
religião, disseminados pelo planeta inteiro.
Catolicismo e cinema: catequese
No que tange ao catolicismo, a reação da Igreja desde o
surgimento do cinematógrafo foi razoavelmente positiva, pois nele viu de
imediato a chance de continuar a sua catequese. Nesse sentido, a Igreja Católica
sempre esteve pronta para abraçar novas tecnologias que permitissem um melhor
desenvolvimento da sua catequese. Desde o longínquo passado foi ela que
financiou a arte, e durante toda a chamada Idade Média, a arte era a sacra, e
isto se alterou pouco quando se estabeleceu o período do Renascimento. A Igreja
era a patrona das artes, e estas serviam aos seus propósitos (a arte também se
serviu da Igreja). Já no século XVIII e no seguinte, a Igreja se apropriou mui
rapidamente da Lanterna Mágica, invenção de um jesuíta alemão, Athanasius
Kirchner , para com as imagens projetadas encantar crianças e adultos com a
vida de Cristo ou com diversas passagens bíblicas.
Porém, o cinema não era a Lanterna Mágica, e pouco depois do
seu surgimento uma indústria se formou. E esta indústria não tinha como estar
sob o controle de nenhuma igreja. Pois o contexto histórico era o da laicização
do estado em diversos países. Então, restou-lhes pressionar e negociar para que
os filmes originados pudessem ser de alguma utilidade ou qualidade moral para
atender às necessidades de seus fiéis.
O campo do filme religioso
É neste embate entre o campo do filme (indústria
cinematográfica) e o campo do religioso (instituições religiosos e seus
seguidores) que surgiu o Campo do Filme Religioso . Um campo que se organizou e
se reorganiza conforme os conflitos de interesses de um e de outro. As
comunidades cristãs lidaram com o cinema de formas muito variadas, umas
aceitando-o muito rapidamente e buscando agregá-lo e outras questionando ou
rejeitando. Até onde nossas pesquisas progrediram parece que os protestantes
tiveram maior dificuldade em lidar com as imagens em movimento do que os
católicos. Essa resistência, apesar de significativa, foi derrotada perante o
interesse dos espectadores e da indústria cinematográfica, provavelmente,
segundo a pesquisadora americana Pamela Grace, em seu livro The religious film
(2009), por causa desta capacidade “mágica” do cinema em recriar contextos e
estórias das quais todos gostaríamos de ter participado ou ver como realmente
ocorreram. A Igreja Católica só realmente se pronunciaria oficialmente a
respeito do cinema já na década de 1930. Para alguns padres o cinema
significava uma grande oportunidade de educação espiritual e moral das massas,
às vezes lamentavam-se da qualidade do produto que tinham de assistir. Já
outros eram francamente contra, chegando a dizer que era uma “invenção do
Diabo” .
A teologia entra em cena
Na busca de verificar e pensar a qualidade do conteúdo dos
filmes é que aos poucos a teologia vai entrando em cena. Aqui, precisamos
entender a teologia em seus diversos níveis, não necessariamente falamos dos
teólogos, mas da teologia adotada em determinados contextos históricos e que
formou nitidamente as pessoas comuns e os representantes das instituições
religiosas. É através da teologia interiorizada que os olhos deles irão filtrar
a qualidade dos filmes. Este tipo de prática mantém-se até a atualidade. Nesse
sentido, dizemos que mesmo os cineastas possuem pressupostos teológicos envolvidos
em suas produções mesmo que o ignorem, pois nasceram num meio cristão
mergulhado em leituras e práticas teológicas vazadas pela religião. Então, de
maneira direta ou indireta a teologia influencia na manufatura dos filmes de
assunto religioso. E esta teologia pode ser – no que respeita ao cristianismo –
católica ou protestante .
Já em meados dos anos 1910 as primeiras revistas de crítica
cinematográfica, organizadas pioneiramente por católicos, começaram a circular
e a ter um papel relevante na indicação da qualidade moral dos filmes que seus
fiéis poderiam ver. Muito rapidamente essas revistas passaram a se preocupar
também com a qualidade estética dessas películas. Preocupavam-se em formar um
público que soubesse lidar com o cinema, muito mais do que censurar ou
reprimir, havia o desejo de que o espectador pudesse reconhecer as qualidades e
os defeitos dos filmes. Esta posição da crítica católica, francamente favorável
a uma qualidade artística do filme, terminaria se impondo como uma prática adotada
até mesmo pelos protestantes. A conjunção de qualidade moral e artística, não
necessariamente da Igreja, mas com certeza da prática da crítica Católica, iria
aos poucos desembocar na sua conhecida preferência pelos “filmes arte” ou
“cult” e, sobretudo, os “autorais”, como sendo os mais dignos de análise e
aqueles nos quais eles teriam plenas condições de encontrar reflexões cristãs e
teológicas de qualidade. Essa posição ficou ainda mais clara com o surgimento
do chamado “cinema autoral” em fim dos anos 1950, e que havia se iniciado com a
“política dos autores”, sob a influência direta de François Truffaut , na
revista francesa Cahiers du Cinèma.
O cinema de massa
Esta não foi apenas a posição dos críticos católicos, mas
também a de pesquisadores e teóricos franceses e brasileiros relativamente à
dignidade do objeto de estudo. Até pouco tempo atrás falar em cinema de massa,
ou mainstrean, nos meios acadêmicos era uma espécie de blasfêmia, punida com o
ostracismo e a ridicularização. Pois o mainstrean era o “cinema americano”
contra o qual se lutava, pois era amigo da alienação do proletariado, etc. Nem
é necessário dizer que, por mais sincera que houvesse sido esta escolha pelos
filmes mais artísticos, ela significava evidente elitismo. Seria uma elite pensante
que diria o que serve e não serve para as massas. No entanto, atualmente as
massas – graças às novas mídias – parecem ter se imposto, e é necessário saber
– minimamente – o que estas veem e por que gostam de ver o que veem e como
lidam com isso. E, para nós, isto parece pedir uma mudança de postura
relativamente ao que se fez no passado. Nem por isso devemos minimizar o
importante papel das igrejas na formação do público de cinema e da cinefilia;
uma das raízes evidentes do chamado Cinema Moderno está plantada na formação
dos cineclubes na Europa, que eram majoritariamente de origem católica.
Cinema e a produção de teologias
Os teólogos que se voltaram para a análise do filme
fizeram-no em busca de encontrarem temas teologais e também buscando verificar
a adequação das adaptações bíblicas. Ainda era um campo de pesquisa bastante
inicial e não tiveram a preocupação de verificar se o cinema era capaz de
produzir teologias e quais os seus significados. Partia-se da teologia para o
filme e não do filme para a teologia. Esta preocupação é bem recente e data tão
somente de fins dos anos 1990, com trabalhos de teólogos como William Telford,
Clive Marsh e Lloyd Baugh. Há pouco tempo descobri haver também uma vertente
italiana destes estudos, mas com a qual ainda não pude me familiarizar. Hoje
essas duas vertentes de estudos convivem.
Observemos que as relações entre cinema/religião e
religião/cinema são complexas e necessitam ser observadas nos seus diversos
contextos históricos e sociais para serem bem compreendidas, caso contrário
perderemos os seus reais significados.
Link para a Entrevista completa: